sexta-feira, 11 de novembro de 2011

PM, violência e estudantes


Após a polícia militar efetuar o mandado de reintegração de posse do prédio da reitoria da USP, uma foto foi publicada pela grande mídia, em um dos raríssimos momentos do mais próximo que podemos chamar de ''solidariedade'' para com os estudantes.

Esta fotografia tem o poder de condensar em si mesma todo o debate que está sendo travado pelas pessoas sérias relacionadas (ou não) à universidade, e não por polemistas. Uma rápida descrição (prescindível): vemos um soldado que aponta uma arma para o rosto de um estudante, que tem os braços levantados para cima, e agarra com sua mão direita seu próprio cachecol. Não menos assustadora é a cara do policial mais à direita, que olha de soslaio à cena, e parece demonstrar uma frieza profissional perante a situação, que lhe é ordinária.

Espero que esta foto não parece normal para ninguém, pois ela tem sérias questões que merecem ser interpretadas, e alguns índices para o melhor entendimento disso que se passa na USP, hoje, e com a PM brasileira como um todo.

Bom, de início, e mais importante de tudo, temos a questão da direção para a qual a arma está apontando. Não precisamos de nenhum exame de balística para compreender que ela está direcionada à cabeça do estudante. O que o policial faria caso o estudante reagisse?

À esta pergunta, alguns poderiam dizer se tratar de uma arma de balas de borracha. Realmente, não sou um especialista, mas pelo que posso constatar não se trata de uma arma de balas borracha. E, mesmo que o fosse, isso significa que: ela não pode ser atirada de perto e nem direcionada para o rosto/órgãos vitais.

Dessa maneira, podemos tirar algumas considerações:

a) A polícia tem o direito legal, teoricamente, de reagir com força, inclusive de fogo, quando ameaçada. Entretanto, sabemos que o uso da violência legal por parte da polícia extrapola a ordem da legalidade. Esta simples foto o mostra claramente: uma reação do aluno, qualquer que fosse, ou a mínima imperícia do policial, terminaria com a morte do aluno. Basta, para um nível mais macro sociológico, ler os relatórios da Anistia Internacional sobre a polícia militar carioca e paulista

b) Entretanto, isto parece ter tomado outras dimensões pois não se trata mais unicamente daquilo que o sociólogo francês Luic Wacquant chama da ''criminalização da pobreza'', pois começou a tocar um grupo universitário, detentor de um capital cultural suficientemente alto e crítico para que eles se revoltem. Mas uma parte da sociedade parece não entender que a reovlta não é por busca de privilégios, por não ter uma polícia correndo atrás deles quando querem fumar maconha.

A questão é que os alunos da USP estão tentando mostrar para toda a sociedade que é possível obter segurança sem recorrer às atitudes fascistas de uma polícia mal treinada. E isso a USP deve buscar e encontrar, para, como uma instituição de ensino e pesquisa de nível altíssimo, servir de modelo para uma reforma urgente e necessária da própria polícia militar.

Concluo, deste modo, afirmando que não, os estudantes da USP não se revoltam porque querem fumar maconha. Mas colocam em cheque a atuação fascista de uma polícia racista, intolerante, truculenta e assassina, de modo extremamente amplo. Mas colocam em cheque, também, uma questão mais imediata: é este tipo de segurança que a universidade precisa?

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Indignação e dignidade

Sentados na mesa de frente a janela de um badalado restaurante da zona oeste de São Paulo, um casal de namorados vacila entre a escolha dos pratos. O momento decisivo para os deleites efêmeros que seguirão à difícil escolha são amenizados por carícias, goles de cerveja e comentários soltos. A menina, sentada de modo que possa ver toda a rua, deslumbra a paisagem urbana que a entorna, ou melhor, que entorna o restaurante.

Rôti de peito de peru ao molho mostarda. Pato ao molho de vinho. Pratos escolhidos, fim da tormenta. Para ajudar, os goles de cerveja caídos diretamente no vazio do estômago sobem rápido, deixando o casal numa sensação livre, uma leve bebedeira que não chega nem a deixá-los tontinhos, mas soltos. Um momento de felicidade no aguardo dos pratos, cuja iminente chegada é aguardada com tranquilidade e azeitonas suavemente apimentadas.

É neste momento de deleite que a namorada vê surgir, sobre o ombro de seu namorado, na rua, do lado de fora do restaurante, uma família pedintes. Uma mãe com um filho, de sexo indefinível à distância, no colo, e um casal de filhos ao seu lado, pedindo restos de comida aos garçons do restaurante que serviam as mesas ao ar livre. A namorada, não suportando a quebra do momento hedônico que experimentava, pede para o namorado mandar o garçom expulsar a família pedintes de diante do restaurante. Estupefato com o pedido, após muito hesitar - sempre de costas para a rua - não obstante ele a satisfaz.

A cena é familiar, corriqueira e ignorada. No Itaim, na Vila Madalena ou na Rua Augusta (para acompanhar as zonas da cidade onde saem a burguesia de baixíssimo capital cultural, a de alto capital cultural e a já não tão burguesa, e com capital cultural relativamente alto, respectivamente) a coexistência de ambientes de lazer com a miséria é flagrante. Se os ''elementos indesejáveis'' pela administração de cinemas, bares, casas noturnas e restaurantes são impedidos de entrarem nos estabelecimentos, o encontro no momento da saída à rua é inevitável.

Esta cena foi canonizada como apoteose da modernidade por Baudelaire, em Família de Olhos, em seu Pequenos poemas em prosa. A fúria da pena do poeta francês não poderia deixar de notar as contrariedades surgidas a partir da modernização de Paris levada a cabo por Haussamn, durante o governos de Napoleão III: o surgimento de belos bulevares, onde se vivencia a cidade de uma maneira totalmente inédita, vem acompanhado das contradições inerentes ao próprio desenvolvimento moderno, ou seja, o aumento da miséria e de sua visibilidade.

Por mais sensíveis (como o homem do casal) ou insensíveis (como a mulher) que possamos ser com a miséria que nos entorna, a saída parece ser sempre a mesma, tentar não ver a realidade e continuar aproveitando; ou, na melhor das hipóteses, lamentar a existência da miséria, e seguir em frente, lavando a alma com um dia trabalho voluntário na semana seguinte.

A indignação, entretanto, parece ter deixado a esfera das relações entre classes, chegando no seio de uma pequeno burguesia com acesso à informações, redes sociais e educação. Mas, sobretudo, parece ter chegado à países centrais na lógica do capitalismo internacionalizado. Espanha, Portugal e Grécia (adoraria saber se existe uma correlação entre serem estes os países que a crise tem atingido com maior força na Europa e o fato de terem vivenciado regimes ditatoriais muito semelhantes até muito pouco tempo) como países de segundo escalão. Mas Estados Unidos, Inglaterra e França, que também começam a ter parte de sua população começando a se movimentar.

Sem dúvida alguma, se o movimento de protestos tivesse se restringido aos países árabes, onde ainda nem recebia a alcunha de indignados, seus efeitos teriam sido muito menores do que os que podem emergir deste. Foi a partir do momento em que uma certa elite, senão em capital econômico, pois se trata de uma grande massa pequeno-burguesa européia-norte-americana, sem dúvida alguma em capital cultural, repleta de estudantes universitários.

Lembremos de Bourdieu, para quem as mudanças deveriam ocorrer a partir de fissões na própria elite. Cético de uma mudança pelas vias populares.

Parece claro que alguma coisa está prestes à mudar. Muito provavelmente não se tratará de uma revolução, e sim de uma reforma, sobretudo a diminuição dos poderes dos bancos sobre as políticas econômicas dos Estados. Seguindo a mesma lógica de Marx no 18 de Burmário de Luís Bonapart, a burguesia concederá uma parte de seu poder, para garantir a manutenção da ordem liberal-capitalista.

Mas e no Brasil? O cenário parece surpreendentemente diferente deste das manifestações europeias. Sobretudo pois, a partir das configurações do capitalismo internacionalizado, são os trabalhadores, e não a burguesia baixa, ou grande, que sofrerão com a crise. Diferentemente da Europa, que viu uma expansão universitária de nível muito superior à maioria das universidades brasileiras – podemos ter excelentes universidades, mas elas são poucas e restritas, e menor ainda é o número daquelas dispostas a colocar no currículo um pensamento crítico. Obviamente, é de maneira deliberada que os diversos governos brasileiros, desde o tempo da ditadura, sucatearam a educação no Brasil para dominarem sem grandes problemas – tática seguida por Sarneys, FHCs, Lulas e Dilmas.

Ou seja, aqueles que detém os meios para a mudança, não farão as mudanças. Por diversos motivos. O primeiro, pois não sentem que há necessidade: mesmo que os gastos por parlamentar no Brasil seja o maior do mundo (mais do que dez vezes o que ganha um parlamentar francês), a elite brasileira continua a crescer, e não tem motivos com o que se preocupar, a não ser com aproveitar a boa onda de crescimento. Segundo: a não expansão do ensino educacional de qualidade mina as possibilidades de indignação da maioria da população. Terceiro: uma dialética nefasta parece ter tomado conta do país: não poderemos nos indignar contra as corrupções do governo pois não existe um número grande de pessoas suficientemente conscientes da gravidade da situação política (pois, é claro, assim são mentidas pela precária educação brasileira), e, ao mesmo tempo, a grande burguesia brasileira não tem interesse nessa expansão do sistema educacional: sai mais barato pagar uma universidade privada para os filhos e sustentar políticos corruptos para facilitarem suas demandas do que terem que pagar mais direitos sociais ou salários melhores para trabalhadores mais classificados.

Espero estar redondamente enganado. Espero, com toda sinceridade, que a experiência da cotidiana da maioria desfavorecida leve à uma toma de consciência política. E vejam bem, amigos reacionários em questão, meu texto é até mesmo conservador, reformista, a mais pura social democracia; então não vinham com reducionismos e preconceitos àqueles que estão tentando pensar pelo Brasil.

PS: Aceito a crítica de que meu texto pode ser tido como elitista. Mas não no sentido econômico. Espero ter deixado claro que relaciono a maior possibilidade de indignação com o capital cultural, e não econômico. Acredito que apenas quando uma grande massa de brasileiros tiver acesso à uma educação de qualidade, as coisas poderão começar a acontecer também em nosso país. Pois, ao que tudo indica, desde os absurdos que vivenciamos com a realização da Copa até os gastos com parlamentares, estamos passando à margem da história, e o tão falado desenvolvimento econômico que estamos vivendo, virá acompanhado de contradições há muito superadas em países que tiveram um desenvolvimento e expansão paralela no sistema educacional.

(e neste cenário todo, quando os estudantes tentam mostrar seu ponto de vista, suas propostas para a sociedade, são considerados maconheiros, vagabundos, playboys)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Um blog trágico e nada cômico

Diogo Salles - pouco importante saber se este é seu verdadeiro nome ou um pseudônimo - possui um blog intitulado ''Trágico e cômico: política, futebol e música, no humor de Diogo Salles''.

Hoje, dia 7 de novembro, nosso caro blogueiro publicou o seguinte comentário,pretendendo-se humorístico: http://blogs.estadao.com.br/tragico-e-comico/2011/11/07/gap-revolution-na-usp-contra-o-imperialismo/ . O título de seu pequeno comentário - que acredito ser impossível chamá-lo de jornalístico - é ''Gap Revolution na USP: contra o imperialismo'', seguido dessa caricatura.

Seu texto segue com uma descrição daquilo que Diogo chama de ''o novo perfil revolucionário'': que utiliza marcas de luxo, anda com carrões importados, e se revolta por não mais poder fumar maconha, além de gozar do tão criticado paitrocínio. Por fim, o blogueiro tenta ironizar a ''revolução'' dos estudantes da USP, afirmando que eles conseguiram o que queriam ''virar meme na internet''.

Acredito que eu tenho alguns bons comentários para fazer sobre este tal Diogo, que teve uma certa aceitação no mundo virtual.

Em primeiríssimo lugar acredito que nosso caro blogueiro jamais tenha pisado os pés na FFLCH. Sua descrição é perfeitamente cabível para uma grande maioria frequentadora da FEA, da POLI e etc. Entretanto, quero deixar claro que considero extremamente reducionista julgar alguém por suas vestimentas e que minha proposta é demonstrar esta concepção de que uma pessoa possa ser julgada pelas suas roupas: podemos ver muitos ''símbolos'' de revolta, como cabelos azuis, embelezando a cabeleira de pessoas ultra conservadoras; e pessoas que se vestem de maneira completamente ''na moda'', com posições extremamente inovadoras. Deste modo, acho que devemos considerar simplória a ideia geral do texto.

Saindo deste preconceito medíocre do blogueiro, não consigo deixar de me questionar sobre suas intensões ao fazer a tal ''piada''. Ora, alguém que se diz um jornalista e que trabalha com humor deve informar ao mesmo tempo que diverte, ou não? Deve apresentar versões provocadoras. Mas provocadoras em nome de quê? Em nome de uma dominação político (e agora militar) que usa do conservadorismo de grande parte da população para defender a manutenção dos problemas sociais como eles são (pois, sim, isso serve ao interesse de uma determinada elite), ou uma provocação que incomode, que proponha uma alternativa, e não seja apenas destrutiva, uma provocação que coloque em cheque a maneira grotesca como o poder político tem se transformado fantasmagoricamente em poder militar.

Me parece que uma referência ao livro do crítico literário russo Mikhail Bakhtine seja imprescindível. Bakhtine, em suas reflexões sobre a obra do escritor francês Rabelais, distingue o humor burguês, negativo e pessimista, do humor medieval, alegre e que colocava em cena uma realidade distinta da vivenciada pelas formas de dominação da Igreja. Não apenas Rabelais estaria ligado à esta segunda corrente, como também muitas correntes e tendências modernistas.

A questão que me coloco é: estaria o blogueiro Diogo ciente das reivindicações estudantis, ou apenas estaria ele se colocando um pseudo-humor, que joga com categorias conservadoras dispersas pelo corpo social, sem ao menos perceber os efeitos reais de seus comentários?

Como sou alguém realmente ingênuo, e acredito que não existam pessoas má-intencionas no mundo (José Sarney, Berlusconi e Hitler à parte), gostaria de aproveitar a crítica ao blogueiro para informá-lo, e a quem quer que esteja lendo este blogue, quais são as reivindicações dos estudantes tão criticados pela mídia. Deixo claro que estou longe de me colocar como porta voz de todos, e de falar que existe uma homogeneidade, mas apenas quero mostrar a clareza e razoabilidade do discurso do movimento estudantil, já que a mídia não o faz.

Acredito estar me alongando muito nessa resposta, mas vou tentar sintetizar:

1. Os alunos da FFLCH (aos quais a mídia e nosso caro blogueiro veem pintando como playboys vagabundos) também estudam no Campus Butantã e estão preocupados com a segurança. O problema é que não estamos de acordo com a maneira como a segurança tem tentado se implementar. Além disso, entre os 9 cursos mais avaliados da USP (que a colocaram recentemente entre as universidades de maior prestígio no mundo, 6 estão na FFLCH).

2. A PM brasileira é considerada a polícia mais violenta do mundo democrático. Ou seja, não considerando países do Irã, Síria, Coréia do Norte, e etc... Para quem gosta da Globo e não acredita em mim: http://g1.globo.com/videos/globo-news/espaco-aberto-alexandre-garcia/v/violencia-policial-no-brasil-mata-1800-brasileiros-por-ano/1578543/; ou para aqueles que prefiram a Record: http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/em-cinco-anos-pm-de-sao-paulo-mata-mais-que-todas-as-policias-dos-eua-juntas-20110607.html; e ainda para quem que se interessar, ver na renomada anistia internacional, em inglês: http://www.hrw.org/node/87020

3. Por quais motivos a universidade, que se quer um lugar de pesquisa e ensino de vanguarda, que buscam soluções para os problemas da sociedade, deve reproduzir, no seu cerne, uma instituição tão putrificada como a Polícia Militar?

4. Em suma, segurança não é sinônimo de Polícia Militar. Afinal, as periferias da cidade de São Paulo estão repletas de PMs e não são nem um pouco seguras.

Os estudantes devem buscar junto com a reitoria soluções para a violência que não passem pelo uso da força policial, para servirem de modelo para uma necessária reforma da Polícia Militar. Entre as propostas concretas, estão: a) implementação de uma guarda universitária extremamente bem treinada e com programas de atualização; b) um treinamento que não reproduza o modo de funcionamento racista, classista e agressivo da PM; c) a integração de comunidades menos favorecidas que se situam em torno da USP na vida da própria USP; d) uma guarda universitária que não ande armada, mas com fácil acesso à polícia armada, em caso único e exclusivo de urgência.

Termino este pequeno artigo com citando um outro, humorístico e verdadeiramente provocador, diferente do Diogo Salles, que se aproxima daquilo que considero um humor de qualidade: http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/herald/brasil/alunos-da-usp-exigem-meia-fianca

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

PanAmérica: José Agrippino de Paula e o Caos da Modernidade

No controverso Tudo que é sólido se desmancha no ar, o intelectual marxista norte-americano Marshall Berman dedica todo um capítulo para aquilo que chama de ''o modernismo do subdesenvolvimento''.

Enquanto lia este ensaio, deparei-me com PanAmérica, obra de José Agrippino de Paula. Confesso estar muito além de meus objetivos fazer uma interpretação desta obra tão complexa e repleta de alegorias. Acredito, porém, que com a ajuda negativa de Berman - isso é, rebatendo suas proposições -, possamos traçar um ponto de partida pra tal análise. Detenhamo-nos um pouco em alguns trechos de Berman.

''Em países relativamente atrasados, onde o processo de modernização ainda não deslanchou, o modernismo, onde se desenvolve, assume um caráter fantástico, porque é forçado a se nutrir não da realidade social, mas de fantasias, miragens e sonhos'' (BERMAN, p.275)

Este trecho de Berman parece fazer todo o sentido num primeiro momento para uma pertinente análise da obra de Agrippino, sobretudo se consideramos a afirmação de que ''todas as formas de pensamento e arte modernistas têm um caráter dual: são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de modernização'' (idem, p. 275).

Existe, entretanto, algo na primeira afirmação de Berman que me incomoda - e sobretudo um caos desconcertante do livro de Agrippino que me faz repensar tal aproximação.

Quando Berman diz ''em países relativamente atrasados'', acredito que devemos antes de tudo notar que o adjetivo atrasado pede um complemento: atrasado com relação a quê? Ora, Berman não nos responde, mas podemos inferir, à partir do conjunto de artigos que forma seu livro, que se trata de um atraso relativo aos modelos de desenvolvimento trabalhados nas outras partes do seu livro não dedicadas ao ''modernismo no subdesenvolvimento''. Ou seja, o modelo de desenvolvimento ocidental, notoriamente, o francês, o alemão e o norte-americano (ao britânico Berman se refere inúmeras vezes, sem contudo lhe dedicar um capítulo próprio).

Em suma, o que me incomoda na primeira parte dessa formulação de Berman é que parece existir um senso unívoco de desenvolvimento, em relação ao qual os países são classificados, colocando a Europa Central e os EUA como modelo, e o grande resto como ''atrasados'', grosso modo.

A segunda ideia que me parece repugnante é a de que o modernismo em países ''subdesenvolvidos'' ''é forçado a se nutrir não da realidade social, mas de fantasias, miragens e sonhos''. Ora, qualquer leitor de qualquer obra modernista sabe exatamente que o modernismo em países ''subdesenvolvidos'' tira sua riqueza exatamente do contato entre duas realidades sociais diferentes que são vivenciadas simultaneamente, aquilo a que podemos dar o nome de ''tradicional'' e o ''moderno'' (impossível não confessar a minha infelicidade em utilizar estes dois termos).

Acredito ser exatamente do híbrido entre duas diferentes formas de sociabilidade vivenciadas simultaneamente que surja a qualidade e o alto nível da literatura latino-americana, por exemplo. E tentar explicar o grupo de escritores latino-americanos cujo estilo é caracterizado por alguns críticos como ''realismo fantástico'' pela falta, pela ausência da experiência moderna é não apenas paupérrimo como absurdo. É justamente nessa singular e complexa experiência de vivenciar simultaneamente ''modernidade'' e ''tradição'' que está a grande riqueza desta literatura.

O problema todo está no fato de Berman reconhecer esta dicotomia da experiência para os países centrais, e não o fazer para os países ''subdesenvolvidos'': ''ao mesma tempo, o público moderno [europeu] do século XIX ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro'' (idem, p. 26); porém, um brasileiro ou mexicano do século XX (e mesmo do século XIX) não viveria essa dicotomia, resguardando sua experiência unicamente ao ''mundo não tradicional''.

Nos detenhamos agora, por um instante, na segunda afirmação de Berman, muito mais rica e melhor formulada que a primeira: ''todas as formas de pensamento e arte modernistas têm um caráter dual: são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de modernização'' (idem, p. 275).

Diferentemente da primeira afirmação, que merece uma recusa total, esta é digna de ser relativizada. Para tanto, teremos que fazer referências a outros trechos do livro, no qual Berman afirma que o modernismo que lhe interessa é aquele que mantém uma relação dual com relação à modernidade, ou seja, que mantenha ''uma perspectiva crítica que pudesse esclarecer até que ponto devia caminhar essa abertura para o mundo moderno e até que ponto o artista moderno tem a obrigação de ver e denunciar os limites dos poderes deste mundo'' (idem, p. 45)

Entretanto, em PanAmérica - e é aqui que encontramos a genialidade do artista - José Agrippino de Paula se coloca para além da dialética entre aceitação e denúncia da modernidade. Parece existir uma recusa total à esta modernidade imbecilizadora: a escrita corrida, a atordoante repetição do pronome ''eu'', as aventuras surrealistas deste ''eu'' estão diretamente correlacionadas a uma denúncia à ditadura do consumo de bens e de momentos, em paralelo à Ditadura Militar imposta pelos Estados Unidos em diversos países da América Latina.

Não é a toa que um dos episódios, em meio a encontro com estrelas de cinema hollywoodiano e cenas de sexo desvairadas, o narrador mata o adido militar norte-americano - ''eu atirei no gordo Adido Militar e vi a bala penetrando lentamente em sua barriga e o gordo ianque tombou no chão se contraindo de dor'' (idem, p. 123). - para logo depois ir parar no DOPS.

A denúncia é clara e direta, porém trabalhada com uma estilística desconcertante. Trata-se de uma recusa a este modelo de modernização, de desenvolvimento, que se mantém tanto a partir de adidos militares como de musas e estrelas de Hollywood. Neste sentido, é a noção de experiência que conta, e não o sonho e imagens de algo vivido longe. Trata-se de uma atitude absolutamente crítica em relação aos rumos da história brasileira tal como se encaminhou em à partir do golpe de 1964 (o livro foi publicado em 1967), e vivenciados em todas as suas contradições no país.

Nada mais significativo, nesse sentido, que o fim do livro seja um amontoado de imagens apocalípticas.

''Sua angústia interior frequentemente inspirou visões, ações e criações revolucionárias'' (Berman, p. 57), escreveu o crítico norte-americano sobre os intelectuais de países ''subdesenvolvidos''. Para Berman, esta angústia está relacionada a uma certa impotência destes intelectuais que olham o modernismo, o progresso, passar longe de sua realidade. Acredito que no caso de Agrippino possamos falar claramente de uma angústia, mas cujo fundamento encontra-se não na falta de experiência do modernismo, mas sobretudo de vivenciá-lo do ponto de vista do dominado. Uma dominação militar, sem dúvida alguma imposta, mas que traz consigo uma tentativa de dominação cultural jamais concretizada, combatida milimetricamente por uma cultura resistente, que, em toda sua heterogeneidade, tem (ou deveria ter) o alucinado PanAmérica como uma referência indispensável.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Resposta à Gilberto Dimenstein

Resposta à Gilberto Dimenstein


No último dia 30, o jornalista Gilberto Dimenstein expressou em seu blog que sentia – eu o cito - ''um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula''.


O colunista da Folha continua, frases abaixo: ''Centenas de e-mails pediam que Lula não se tratasse num hospital de elite, mas no SUS para supostamente mostrar solidariedade com os mais pobres. É de uma tolice sem tamanho. O que provoca tanto ódio de uma minoria?''. Faço aqui meu primeiro remarque. Dimenstein considera uma tolice sem tamanho, e uma atitude repleta de ódio, pedir que o ex-Presidente da República se trate no SUS. Gostaria muito de entender onde estaria o ódio dessas pessoas? Reivindicar que o ex-Presidente da República se trate no mesmo sistema que a maioria da população, não me parece um ato de ódio, mas uma crítica severa a um governo que teve muitos méritos, mas está longe de ter sido, para não dizer mais, ideologicamente contundente.


Por fim, e aqui acredito que a crítica de Dimenstein chegue a beirar o absurdo, ''Lula teve muitos problemas --e merece ser criticado por muitas coisas, a começar por uma conivência com a corrupção. Mas não foi um ditador, manteve as regras democráticas e a economia crescendo, investiu como nunca no social.''


Não são a favor que Lula trate de seu câncer em hospitais do SUS, muito menos que tirem sarro de sua situação. Isso não significa, entretanto, que aqueles que achem que ele deveria ser tratado no SUS seriam cínicos, maldosos e tolos.


Mas o que mais me assombra nesta coluna de Dimenstein é uma certa associação que permeia todo o texto, relacionando o fato de se tratar no SUS com uma punição. Lula merece críticas, mas não foi um ditador, e investiu no social. Logo, seguindo a lógica de Dimenstein, ele não merece se tratar no SUS. Ele merece algo melhor, pois, como qualquer pessoa com renda, vai se dispôr à pagar duas vezes pelo mesmo serviço, a saúde pública e a privada.


A campanha para que Lula faça seu tratamento em hospitais do SUS deve ser olhada de outra maneira, como uma provocação ao putrificado Estado brasileiro; e não como a interpreta Dimenstein, como uma afronta ao presidente. A campanha toca numa questão central – que vale também para toda a problemática da educação: o SUS não vai mudar efetivamente enquanto não houver vontade política para mudá-lo. Ora, e só não há vontade política para mudá-lo pois Lula, Dimenstein, e eu, nos dispomos à ir para hospitais privados, ao invés de reivindicar um sistema público de qualidade, gratuito, e para todas e todos.


Ressalto todo meu apoio e boas vibrações para a cura de Lula!


Por fim, resta saber: Aqueles que defendem que o Lula deveria se tratar no SUS, teriam a mesma postura caso o doente em questão fosse FHC?