quarta-feira, 2 de novembro de 2011

PanAmérica: José Agrippino de Paula e o Caos da Modernidade

No controverso Tudo que é sólido se desmancha no ar, o intelectual marxista norte-americano Marshall Berman dedica todo um capítulo para aquilo que chama de ''o modernismo do subdesenvolvimento''.

Enquanto lia este ensaio, deparei-me com PanAmérica, obra de José Agrippino de Paula. Confesso estar muito além de meus objetivos fazer uma interpretação desta obra tão complexa e repleta de alegorias. Acredito, porém, que com a ajuda negativa de Berman - isso é, rebatendo suas proposições -, possamos traçar um ponto de partida pra tal análise. Detenhamo-nos um pouco em alguns trechos de Berman.

''Em países relativamente atrasados, onde o processo de modernização ainda não deslanchou, o modernismo, onde se desenvolve, assume um caráter fantástico, porque é forçado a se nutrir não da realidade social, mas de fantasias, miragens e sonhos'' (BERMAN, p.275)

Este trecho de Berman parece fazer todo o sentido num primeiro momento para uma pertinente análise da obra de Agrippino, sobretudo se consideramos a afirmação de que ''todas as formas de pensamento e arte modernistas têm um caráter dual: são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de modernização'' (idem, p. 275).

Existe, entretanto, algo na primeira afirmação de Berman que me incomoda - e sobretudo um caos desconcertante do livro de Agrippino que me faz repensar tal aproximação.

Quando Berman diz ''em países relativamente atrasados'', acredito que devemos antes de tudo notar que o adjetivo atrasado pede um complemento: atrasado com relação a quê? Ora, Berman não nos responde, mas podemos inferir, à partir do conjunto de artigos que forma seu livro, que se trata de um atraso relativo aos modelos de desenvolvimento trabalhados nas outras partes do seu livro não dedicadas ao ''modernismo no subdesenvolvimento''. Ou seja, o modelo de desenvolvimento ocidental, notoriamente, o francês, o alemão e o norte-americano (ao britânico Berman se refere inúmeras vezes, sem contudo lhe dedicar um capítulo próprio).

Em suma, o que me incomoda na primeira parte dessa formulação de Berman é que parece existir um senso unívoco de desenvolvimento, em relação ao qual os países são classificados, colocando a Europa Central e os EUA como modelo, e o grande resto como ''atrasados'', grosso modo.

A segunda ideia que me parece repugnante é a de que o modernismo em países ''subdesenvolvidos'' ''é forçado a se nutrir não da realidade social, mas de fantasias, miragens e sonhos''. Ora, qualquer leitor de qualquer obra modernista sabe exatamente que o modernismo em países ''subdesenvolvidos'' tira sua riqueza exatamente do contato entre duas realidades sociais diferentes que são vivenciadas simultaneamente, aquilo a que podemos dar o nome de ''tradicional'' e o ''moderno'' (impossível não confessar a minha infelicidade em utilizar estes dois termos).

Acredito ser exatamente do híbrido entre duas diferentes formas de sociabilidade vivenciadas simultaneamente que surja a qualidade e o alto nível da literatura latino-americana, por exemplo. E tentar explicar o grupo de escritores latino-americanos cujo estilo é caracterizado por alguns críticos como ''realismo fantástico'' pela falta, pela ausência da experiência moderna é não apenas paupérrimo como absurdo. É justamente nessa singular e complexa experiência de vivenciar simultaneamente ''modernidade'' e ''tradição'' que está a grande riqueza desta literatura.

O problema todo está no fato de Berman reconhecer esta dicotomia da experiência para os países centrais, e não o fazer para os países ''subdesenvolvidos'': ''ao mesma tempo, o público moderno [europeu] do século XIX ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro'' (idem, p. 26); porém, um brasileiro ou mexicano do século XX (e mesmo do século XIX) não viveria essa dicotomia, resguardando sua experiência unicamente ao ''mundo não tradicional''.

Nos detenhamos agora, por um instante, na segunda afirmação de Berman, muito mais rica e melhor formulada que a primeira: ''todas as formas de pensamento e arte modernistas têm um caráter dual: são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de modernização'' (idem, p. 275).

Diferentemente da primeira afirmação, que merece uma recusa total, esta é digna de ser relativizada. Para tanto, teremos que fazer referências a outros trechos do livro, no qual Berman afirma que o modernismo que lhe interessa é aquele que mantém uma relação dual com relação à modernidade, ou seja, que mantenha ''uma perspectiva crítica que pudesse esclarecer até que ponto devia caminhar essa abertura para o mundo moderno e até que ponto o artista moderno tem a obrigação de ver e denunciar os limites dos poderes deste mundo'' (idem, p. 45)

Entretanto, em PanAmérica - e é aqui que encontramos a genialidade do artista - José Agrippino de Paula se coloca para além da dialética entre aceitação e denúncia da modernidade. Parece existir uma recusa total à esta modernidade imbecilizadora: a escrita corrida, a atordoante repetição do pronome ''eu'', as aventuras surrealistas deste ''eu'' estão diretamente correlacionadas a uma denúncia à ditadura do consumo de bens e de momentos, em paralelo à Ditadura Militar imposta pelos Estados Unidos em diversos países da América Latina.

Não é a toa que um dos episódios, em meio a encontro com estrelas de cinema hollywoodiano e cenas de sexo desvairadas, o narrador mata o adido militar norte-americano - ''eu atirei no gordo Adido Militar e vi a bala penetrando lentamente em sua barriga e o gordo ianque tombou no chão se contraindo de dor'' (idem, p. 123). - para logo depois ir parar no DOPS.

A denúncia é clara e direta, porém trabalhada com uma estilística desconcertante. Trata-se de uma recusa a este modelo de modernização, de desenvolvimento, que se mantém tanto a partir de adidos militares como de musas e estrelas de Hollywood. Neste sentido, é a noção de experiência que conta, e não o sonho e imagens de algo vivido longe. Trata-se de uma atitude absolutamente crítica em relação aos rumos da história brasileira tal como se encaminhou em à partir do golpe de 1964 (o livro foi publicado em 1967), e vivenciados em todas as suas contradições no país.

Nada mais significativo, nesse sentido, que o fim do livro seja um amontoado de imagens apocalípticas.

''Sua angústia interior frequentemente inspirou visões, ações e criações revolucionárias'' (Berman, p. 57), escreveu o crítico norte-americano sobre os intelectuais de países ''subdesenvolvidos''. Para Berman, esta angústia está relacionada a uma certa impotência destes intelectuais que olham o modernismo, o progresso, passar longe de sua realidade. Acredito que no caso de Agrippino possamos falar claramente de uma angústia, mas cujo fundamento encontra-se não na falta de experiência do modernismo, mas sobretudo de vivenciá-lo do ponto de vista do dominado. Uma dominação militar, sem dúvida alguma imposta, mas que traz consigo uma tentativa de dominação cultural jamais concretizada, combatida milimetricamente por uma cultura resistente, que, em toda sua heterogeneidade, tem (ou deveria ter) o alucinado PanAmérica como uma referência indispensável.

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